Pouco se sabe sobre a vida da venezuelana Mirelis Yoseline Diaz Zerpa, de 38 anos, desde que ela deixou o país natal, por volta de 2015, e mudou-se para o Rio de Janeiro com o marido Glaidson Acácio dos Santos, o “Faraó dos bitcoins”. Em solo brasileiro, o casal criou um império que chegou a movimentar R$ 38 bilhões em apenas seis anos — dinheiro que, para as autoridades, é fruto de atividades ilegais. Na denúncia que enquadrou os dois e outros 15 comparsas por crime contra o sistema financeiro nacional e organização criminosa, aceita pela Justiça Federal, o Ministério Público Federal (MPF) revela indícios de que Glaidson e, sobretudo, Mirelis já tinham ligação com fraudes envolvendo bitcoins na Venezuela, onde se conheceram enquanto o ex-garçom atuava como pastor da Igreja Universal. Mais do que isso: o modelo de atuação supostamente posto em prática à época guarda semelhanças com o esquema que os donos da GAS Consultoria, empresa que prometia aos investidores lucro de 10% ao mês mediante supostas transações com criptomoedas, adotariam e ampliariam no Brasil.
O documento obtido pelo GLOBO, assinado por seis promotores do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), elenca informações obtidas na internet, em fontes abertas, sobre o passado do casal. Em agosto de 2015, uma discussão em inglês sobre transações com criptoativos no Reddit, fórum virtual de debates, citava nominalmente Mirelis e Glaidson.
“Algumas pessoas estão tentando honestamente conseguir empréstimos para operar. Outras estão tentando apenas enganar todo mundo”, diz um usuário da rede na postagem, acrescentando que duas únicas pessoas possuíam, à época, 295 bitcoins nas plataformas BitLendingClub e BTC Jam, utilizadas para transações com a moeda digital — montante equivalente, na cotação de então, a aproximadamente R$ 400 mil.
Um segundo internauta responde: “Talvez um dia Mirelis faça o maior dos golpes com seu marido Glaidson”. O homem, que diz conhecer o casal por também ser venezuelano, conclui: “Espero que ela não fuja, mas 300 bitcoins é muita coisa, especialmente na América do Sul”.
A denúncia também reproduz uma conversa ocorrida em dezembro de 2017, no Twitter, entre dois especialistas em bitcoin.
“Houve uma venezuelana que há alguns anos ficou rica com 400 bitcoins. E acho que perdeu todas”, afirma um dos usuários, dessa vez em espanhol. “Como era mesmo o nome dela? Ela tinha um esquema Ponzi armado no BitLendingClub”, responde o outro. O primeiro, então, retruca: “Mirelys”, referindo-se, para os promotores, a Mirelis, apesar do erro na grafia. O segundo especialista encerra: “Quando a expuseram, ela ficou irritada. Falou que estava no Peru, e que seus empréstimos sempre foram pagos. E sumiu da noite para o dia”.
A mulher de Glaidson também aparece em duas listas de fraudadores elaboradas por internautas venezuelanos, ambas disponíveis até hoje na web. Na primeira, o nome da empresária consta, entre mais de mil, abaixo do pedido: “Ajude-nos a ajudá-lo a ter uma comunidade livre de golpistas”. Em uma segunda página, chamada “Contra estafa” (algo como “contra fraudes”, em tradução livre), Mirelis é descrita como tendo “enganado alguns amigos com recargas no PayPal, e agora não aparece”.
Os promotores também encontraram conversas em aplicativos de mensagem em que um homem, não identificado na denúncia, demonstra perplexidade, diante de todo o histórico citado, sobre a presença de Mirelis em um evento sobre criptomoedas e em um jantar promovido por Cláudio José de Oliveira, conhecido como “Rei do bitcoin”, em maio de 2019. A empresa de Claudio, que também acabaria preso acusado de diversas fraudes, acabou falindo menos de dois anos depois da reunião, e o próprio Glaidson aparece como um dos principais credores no processo de recuperação judicial, que tramita no Paraná.
“Esses dois aí deram um golpe de 300 bitcoins na Venezuela. Essa mulher era administradora do grupo Bitcoin Venezuela e se usou da reputação para ficar levantando empréstimo atrás de empréstimo, usando BTC Jam e BitLendingClub”, afirma o homem na conversa, logo abaixo de uma foto que mostra Mirelis e Glaidson no jantar. “O dia em que pararam de emprestar, ela sumiu”, prossegue a mensagem. “Basicamente, ela foi a precursora do esquema de oferecer taxas de juros atrativas para as pessoas investirem no esquema de arbitragem fantasioso dela”, acrescenta.
A arbitragem é um dos métodos de transação com moedas digitais com maior potencial de lucro imediato, pois são realizadas compras e vendas simultâneas em diferentes mercados, buscando as corretoras com melhores preços naquele momento. A GAS Consultoria, embora não detalhasse nos contratos o tipo de operação com criptoativos a ser realizada com o dinheiro aportado pelos clientes, também prometia ganhos rápidos, garantidos e exorbitantes, muito acima de qualquer outro investimento disponível no mercado. Segundo as autoridades, contudo, a empresa não tinha sequer autorização dos órgãos regulatórios para realizar a atividade anunciada.
Por fim, os promotores reproduzem uma mensagem de texto em espanhol enviada a um número da própria GAS Consultoria. “Meus cumprimentos ao senhor Glaidson e à senhora Mirelis. Diga a eles que sou um usuário do Bitlending Club que está MUITO FELIZ com seu empreendimento graças aos bitcoins que roubaram e nunca pagaram. Agora que vemos que estão voltando a seguir com o esquema Ponzi que tinham no Bitlending Club, seguiremos nos organizando até que paguem”. O autor prossegue: “E a Mirelis, se quiser, que siga fazendo mais vídeos gritando e ameaçando. Ela é igualmente uma ladra. Logo visitaremos suas instalações”.
O GLOBO entrou em contato com a assessoria de imprensa da GAS Consultoria e, além de enumerar todo o conteúdo desta reportagem, enviou as seguintes perguntas: como a empresa recebe os relatos presentes na denúncia? Qual era a natureza da operação de Glaidson e Mirelis ainda na Venezuela? Por que o nome de Mirelis consta em uma lista de fraudadores na Venezuela? Quando vieram para o Brasil, os dois deixaram alguma dívida com investidores venezuelanos? Caso sim, por quê?
A GAS, contudo, respondeu apenas que “não existe investigação, processo ou condenação contra Glaidson Acácio dos Santos e Mirelis na Venezuela e em nenhum outro país”. A sucinta nota acrescenta somente que “a vida pregressa do casal não é objeto de acusação”. A empresa, portanto, não refutou as informações disponíveis sobre a trajetória da dupla na Venezuela e tampouco esclareceu como se davam as atividades do casal na terra natal de Mirelis.
De acordo com as autoridades, dois meses antes da prisão do marido, ocorrida no fim de agosto, a venezuelana viajou sob forte esquema de segurança de Cabo Frio, cidade na Região dos Lagos que era a base dos negócios do casal, para a capital do estado. Em seguida, ela foi para o México e, então, para os Estados Unidos, firmando domicílio em Miami. De lá, mesmo tendo o nome incluído na difusão vermelha da Interpol como foragida, Mirelis continuou conduzindo as atividades do grupo.
A informação consta em um interceptação telefônica realizada com autorização da Justiça, na qual um dos sócios do casal conversa sobre a atuação da venezuelana. “A Mirelis é quem está tocando os negócios lá de Miami. Ela está nos Estados Unidos. Provavelmente, não vai vir para o Brasil tão cedo”, discursa o rapaz ao telefone, chegando a dizer que a mulher “sempre foi a cabeça de tudo”. Segundo a Polícia Federal, Mirelis chegou a fazer movimentações de altas quantias no exterior já depois que o marido estava atrás das grades. No total, ela sacou mais de 4.330 bitcoins nos Estados Unidos, montante que beira R$ 1,3 bilhão na cotação atual.
*Matéria do Extra