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14/10/2024 — 06:23
  (Horário de Brasília)

Facções criminosas burlam licitações em Arraial do Cabo, revela O GLOBO

Reportagem de Rafael Soares publicada nesta terça (1) nO GLOBO mostra como quadrilhas usam prefeituras para lavar dinheiro, com destaque para o esquema envolvendo Marcos Nazareth, candidato preso por fraude e tráfico de drogas no município cabista

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Matéria do repórter Rafael Soares, publicada pelo jornal O GLOBO nesta terça-feira (1), revela como as maiores facções criminosas do país, incluindo o Comando Vermelho (CV) e o Primeiro Comando da Capital (PCC), estão burlando licitações e usando prefeituras no Sudeste para lavar dinheiro proveniente de atividades ilícitas. O caso mais recente envolve Marcos Antônio Ferreira do Nazareth, candidato a vereador em Arraial do Cabo, que já foi condenado por tráfico de drogas e está preso por envolvimento em esquemas fraudulentos com a prefeitura local. Confira a reportagem na íntegra.

‘O CRIME EM CAMPANHA’: MAIORES FACÇÕES DO PAÍS BURLAM LICITAÇÕES E USAM PREFEITURAS PARA LAVAR DINHEIRO NO SUDESTE

À direita, adesivo na casa de Nazareth, que também era a sede da empresa que venceu as licitações suspeitas em Arraial do Cabo; candidato aparece à esquerda, de branco, em foto da campanha de 2022

O início da campanha de Marcos Antônio Ferreira do Nazareth, o Marquinho de Nicomedes (PV), não teve caminhada, corpo a corpo nem qualquer ato público. “Estou aqui hoje para convidar cada um de vocês a se juntarem a mim nesta jornada rumo a uma Arraial do Cabo melhor e mais justa para todos”, limitou-se a postar, em 17 de agosto, a conta em uma rede social do candidato a vereador na cidade turística da Região dos Lagos, no litoral fluminense. Na semana seguinte, nova mensagem aos eleitores pelo Instagram. “A voz do povo está chegando”, dizia o texto sobre uma foto do político sorrindo, com os braços cruzados. Grupos no Whats- App também recebem atualizações quase diárias, nas quais ele pede, por exemplo um “voto de confiança” à população local. A ofensiva exclusivamente digital é motivada por razões alheias à disputa eleitoral: desde 18 de junho, o candidato está preso, acusado de desviar mais de R$ 6 milhões em contratos fechados com a prefeitura.

O Ministério Público do Rio (MPRJ) afirma que o político abriu empreiteiras — uma delas, em nome de um “laranja” — que venceram, entre 2018 e 2020, concorrências públicas repletas de irregularidades para construir dois postos de saúde em Arraial do Cabo. O dinheiro foi depositado nas contas das empresas, mas as obras praticamente não saíram do papel até as irregularidades virem à tona, no início de 2021. Os prédios, que já deveriam estar atendendo a população àquela altura, só foram entregues na gestão seguinte.

Réu por diversos crimes em decorrência da fraude, Nazareth tem, no entanto, uma ficha criminal ainda mais longa: em 2008, ele foi condenado a 4 anos e 2 meses de prisão por integrar uma quadrilha que transportava cargas de maconha e cocaína de Mato Grosso do Sul até Arraial do Cabo. Três anos depois, recebeu uma pena de 5 anos e 6 meses após ser preso em flagrante na Rodoviária do Rio enquanto levava drogas, numa mochila, para a Região dos Lagos. No terceiro capítulo da série “O crime em campanha”, que destrincha a influência de quadrilhas na política pelas cinco regiões do país, O GLOBO mostra como facções do Sudeste usam estruturas públicas — abrindo empresas e vencendo licitações, muitas vezes direcionadas — para lavar dinheiro oriundo das atividades ilícitas.

‘A sede fica na casa dele’

Em depoimento prestado à Polícia Civil em 2020, ainda no início da investigação sobre o desvio de dinheiro público, Nazareth admitiu que atuou como matuto para facções — ou seja, negociava e transportava cargas de droga a partir da fronteira. Ele alegou, contudo, que largou o tráfico após o nascimento do filho, em 2011. Por sugestão de amigos políticos, narrou, passou a investir no ramo da construção.

O inquérito indica que o político abriu duas empresas: a M. A. F. do Nazareth Incorporação e Construção, em seu nome; e a Atlantic Construtora, em nome de Jerry Anderson de Araújo Silva, o Jerry da Coca-Cola, um auxiliar de serviços gerais que trabalhava na prefeitura, com salário de R$ 1 mil. Para a Promotoria, Silva era um laranja, e as duas firmas foram criadas unicamente para dividir os contratos fechados com a prefeitura local — e, assim, dificultar a fiscalização.

Atendimento prejudicado: unidades de saúde em Arraial só saíram do papel depois que os contratos com a empresa de Marcos Antônio Ferreira do Nazareth, hoje candidato a vereador, viraram alvo de investigação — Foto: Gabriel de Paiva/ Agência O Globo

Para garantir o direcionamento das licitações, o candidato pagava propinas a funcionários do município: a investigação conseguiu mapear transferências de uma de suas empresas, a Atlantic, para o então vice-prefeito, Sérgio Lopes de Oliveira Carvalho, três secretários e outros nove servidores. Atualmente, Nazareth, Jerry Silva, Sérgio Lopes e outras 16 pessoas são réus pelos crimes de organização criminosa, falsidade ideológica, peculato, corrupção ativa e passiva, ordenação de despesa não autorizada, falso testemunho e lavagem de dinheiro. Apenas Nazareth está preso. O GLOBO não conseguiu contato com os demais citados.

“As empresas do Marcos Nazareth só existem no papel. Não têm funcionários, não prestam os serviços, não têm clientes. A sede fica na casa dele. As duas firmas foram abertas exclusivamente para fechar contratos com o Poder Municipal e, assim, lavar dinheiro obtido com o crime. O Marcos ainda tem vínculos com o tráfico, o curral eleitoral dele está justamente nas áreas dominadas pelo Comando Vermelho (CV). Nessas regiões, só candidatos apoiados por eles conseguem entrar”, segundo a Promotora Tatiana Kaziris, responsável pela investigação que levou o candidato à cadeia.

Não é a primeira vez que uma investigação revela a infiltração do tráfico na prefeitura de Arraial do Cabo. Em 2014, a Polícia Federal (PF) prendeu Francisco Eduardo Freire Barbosa, o Chico da Ecatur, então presidente da Empresa de Desenvolvimento Urbano e Turismo (Ecatur), autarquia responsável pelo serviço de limpeza das ruas da cidade. A investigação concluiu que Chico usava a estrutura do órgão público para lavar o dinheiro da quadrilha de seu filho, Carlos Eduardo Rocha Freire Barboza, o Cadu Playboy, chefe do tráfico da região e também integrante do CV.

A ocultação do dinheiro se dava, segundo a PF, a partir da contratação de funcionários fantasmas e de desvios oriundos de licitações fraudulentas. “As ações criminosas foram perniciosas no sentido de fundir o poder político com o poder do narcotráfico e de manter desvios de recursos públicos”, escreveu o juiz Márcio da Costa Dantas ao condenar Chico da Ecatur, em 2017. Sentenciado a 11 anos e 9 meses de prisão, ele conseguiu o livramento condicional da pena e foi libertado em março do ano passado.

Adesivo na casa de Marcos Antônio, que também era a sede da empresa que venceu as licitações suspeitas em Arraial do Cabo — Foto: Gabriel de Paiva

‘Tenho que comprar o terno pra posse’

O modelo de negócios do CV em Arraial do Cabo também se alastrou por São Paulo, onde o Primeiro Comando da Capital (PCC) passou a injetar dinheiro do crime numa miríade de empresas que participam de licitações junto a prefeituras de todo o estado. Enquanto embrenham-se por disputas violentas em diferentes partes do país, as duas maiores facções brasileiras, de tão hegemônicas em seus próprios redutos, esticaram seus tentáculos até abraçar a estrutura do poder público, tornando-se prestadores de serviços dos mais diversos tipos, todos essenciais aos cidadãos.

De acordo com investigações do MP e da polícia paulista, depois que as firmas vinculadas ao tráfico vencem as concorrências, o lucro obtido com os contratos é devolvido, já limpo, para a facção, que o reinveste nas práticas delituosas. O esquema também conta com a cooptação de políticos e funcionários públicos, que atuam para direcionar as licitações a empresários ligados ao grupo.

Levantamento inédito do GLOBO em processos judiciais e diários oficiais revela que pelo menos 30 municípios de São Paulo têm ou tiveram, ao longo dos últimos dez anos, contratos com empresas investigadas por elo com o PCC. As firmas controlam linhas de ônibus, serviços de limpeza urbana e até hospitais.

“Ao longo da trajetória do PCC, houve uma acumulação inicial de capital nos mercados ilegais, que passou a ser reinvestido nos mercados legais. A organização, que nasceu com o objetivo de promover a autodefesa de presos, passou por uma mudança e virou um coletivo de empreendedores autônomos. Em algum momento, esses empresários do crime precisam do Estado, como fundo, para fazer esse dinheiro circular. O objetivo do PCC não é tomar o Estado, mas permitir que seus membros prosperem e se ajudem a prosperar”, diz Gabriel Feltran, sociólogo e autor do livro ‘Irmãos: uma história do PCC’.

Na capital, dirigentes das empresas de ônibus Transwolff e UPBus, que operam linhas nas zonas Sul e Leste e transportam cerca de 15 milhões de passageiros por mês, foram presos e denunciados à Justiça em abril passado por suspeita de vínculos com o PCC. Segundo a investigação do MP, o controlador da UPBus era Silvio Luiz Ferreira, o Cebola, foragido há mais de uma década e integrante da cúpula da facção. Só em 2023, as duas empresas receberam mais de R$ 800 milhões da prefeitura de São Paulo. O caso vem sendo repetidamente lembrado na campanha por adversários de Ricardo Nunes (MDB), que disputa a reeleição — ele nega participação nas irregularidades.

Em Arujá, no Alto Tietê, a prefeitura pagou mais de R$ 70 milhões a empresas ligadas ao PCC por serviços como coleta de lixo e administração de hospitais e clínicas entre 2016 e 2020. Uma investigação da Polícia Civil revelou que o traficante Anderson Lacerda Pereira, o Gordão, ameaçou e corrompeu políticos e funcionários municipais para direcionar licitações às suas firmas, registradas em nome de laranjas.

Já a rede de empresas em nome do cantor de pagode e empresário Vagner Borges Dias, apontado pelo MPSP como operador do PCC, venceu licitações e assinou contratos com órgãos públicos em mais de 20 cidades paulistas. Ele ainda é acusado de corromper parlamentares para burl(”), então presidente da Câmara Municipal de Cubatão, em dezembro de 2020. Segundo os promotores, o político queria que o empresário “agilizasse” o pagamento da propina.

À esquerda, Vagner Dias, apontado como operador do PCC e suspeito de ilegalidades em 20 cidades; à direita, ex-vereador Ricardo Queixão, de Cubatão, que teria pedido propina para ‘comprar terno’ — Foto: Arte/ Reprodução

‘Vai me deixar sozinha nessa?’

Os laços com o tráfico de Marcos Antônio Nazareth, que disputa as eleições por detrás das grades em Arraial do Cabo, remontam há quase duas décadas. Em 2005, aos 23 anos, ele foi um dos alvos da Operação Atalaia, da PF, que desbaratou uma quadrilha que trazia entorpecentes do Paraguai até a Região dos Lagos em carros de passeio. A investigação resultou na apreensão de mais de 100 quilos de drogas e apontou que o futuro político comprava parte da carga e levava para Arraial do Cabo, revendendo em favelas da região. O chefe do bando era Cristiano de Sá Silva, o Abelha, apontado à época como braço direito do traficante Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar, um dos maiores fornecedores de drogas do Rio, associado ao CV.

Beneficiado por uma decisão judicial, Nazareth logo deixou a cadeia, mas não tardou a retornar. Em julho de 2007, policiais que faziam patrulhamento na Rodoviária Novo Rio suspeitaram da atitude de Gabriela de Lima Teixeira, que acompanhava Marcos Antônio, e pediram para revistar sua mochila — no interior, havia 5 quilos de maconha e 500 gramas de cocaína. Nazareth até tentou convencer os agentes de que não conhecia a mulher, que começou a chorar. “Pô, Marquinho, vai me deixar sozinha nessa?’, disse ela, segundo os PMs. Mais tarde, Gabriela ainda contaria que a mochila era do companheiro de viagem, que não sabia o que havia dentro e que só estava segurando o item enquanto ele comprava as passagens.

Mesmo negando laços com o tráfico atualmente, o candidato a vereador admitiu à polícia que se beneficia da boa relação com bandidos em períodos eleitorais: o próprio político revelou que “passou a ter livre entrada” em áreas da cidade dominadas pela facção porque “conheceu as maiores lideranças do Comando Vermelho” no período em que esteve preso e “conseguiu ser respeitado entre os criminosos”. Já o relatório final da investigação sobre os desvios aponta que o político “usou o dinheiro conseguido com os anos no tráfico de drogas para ‘investir’ no ramo da construção, o que indica a lavagem de dinheiro oriundo do tráfico com a criação da empresa”.

Fiscal da Receita em garagem de empresa de ônibus durante megaoperação em abril: grupo é acusado de vínculo com facção — Foto: Foto: Receita Federal

Em cartas escritas a seus eleitores de dentro da cadeia, o candidato afirma que é um “preso político” e que “está sofrendo perseguição por falar a verdade” — uma referência a vídeos publicados em suas redes em que faz denúncias sobre a atual gestão da prefeitura. “Estou preso, sim, mas não estou morto. Vou registrar minha candidatura e tomarei posse no dia 1º de janeiro. Não desistam. Venho aqui pedir o apoio de todos os meus amigos à minha candidatura, são nas horas mais difíceis que precisamos dos amigos”, disse, em um texto enviado nos grupos que mantém no WhatsApp.

Em nota, seus advogados, Wellington Corrêa e Marco Aurélio Torres Santos, alegam que, “no curso do processo, ficará demonstrado que Marcos Antônio é inocente e que a ação penal foi instaurada com base em elementos inverídicos trazidos por opositores políticos”. No último dia 16, o Tribunal de Justiça do Rio (TRE-RJ) impugnou a candidatura de Nazareth sob o argumento de que, por conta de sua condenação por tráfico de drogas em 2011, ele ainda está inelegível. Como o candidato recorre da decisão, seu nome estará nas urnas e ele poderá ser votado normalmente.

*Com informações dO GLOBO.

MTb 0022570/MG | Coordenadora de Reportagem  Site do(a) autor(a)

Pós-graduada em Jornalismo Investigativo pela Universidade Anhembi Morumbi; e graduada em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, pela Universidade Veiga de Almeida.

Atuou como produtora/repórter na Lagos TV, Coordenadora de Programação na InterTV - Afiliada da Rede Globo, apresentadora na Rádio Costa do Sol FM e editora no Blog Cutback. É repórter no Portal RC24h desde 2016 e coordenadora de reportagem desde 2023, além de ser repórter colaboradora no jornal O Dia/Meia Hora. Também é criadora de conteúdo para a Web 3.0 na Hive.

Vencedora do 3º Prêmio Prolagos de Jornalismo Ambiental, na categoria web.

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