Operações de combate à captação irregular de água têm se tornado cada vez mais frequentes na Região dos Lagos, uma vez que, atualmente, o abastecimento clandestino é considerado um grande desafio ao sistema de saneamento básico. Isso porque, além de configurar crime, a prática intensifica a pressão sobre os recursos hídricos, contribui para o rebaixamento dos lençóis freáticos, atrapalha o equilíbrio da Lagoa de Araruama e ainda coloca em risco a saúde pública.
Apesar dos prejuízos, muitas pessoas desconhecem a ilegalidade da prática, que ocorre quando a água é captada e distribuída fora dos sistemas oficiais. Sem garantia de segurança sanitária ou origem, geralmente, o abastecimento clandestino envolve a perfuração irregular de poços ou ligações ilegais na rede pública, com armazenamento em cisternas e fornecimento irregular.
Por vezes, essa distribuição é feita por caminhões-pipa que operam sem fiscalização, afetando diretamente o desempenho da rede. A prática provoca diversos problemas, como perda de pressão, desequilíbrio no fornecimento, sobrecarga do sistema e comprometimento da qualidade do serviço prestado à população regularmente conectada.
Esse tipo de ação se enquadra no artigo 155 do Código Penal, como furto, quando há desvio de água da rede pública, além de configurar crime ambiental, quando envolve captação de recursos hídricos sem autorização dos órgãos competentes. Por isso, operações de fiscalização são frequentes e, muitas das vezes, envolvem ações conjuntas.
Com 4.706 flagrantes de irregularidades Cabo Frio, Búzios, São Pedro da Aldeia, Iguaba Grande e Arraial do Cabo apenas no primeiro semestre de 2025, ações com equipes próprias da Prolagos, concessionária responsável pelo abastecimento de água e esgotamento sanitário na região, e ações conjuntas, envolvendo as polícias Civil e Militar Ambiental, além das Prefeituras, são rotineiras.



Operações de combate a pontos clandestinos de captação de água tratada também são frequentes. Conforme o Instituto Estadual do Ambiente (INEA), a média anual de fiscalizações de regularização hídrica nessa região é de 250. Ainda de acordo com a Prolagos, que apoia o instituto nessas ações, apenas no último semestre, é estimada a recuperação de 195 mil litros furtados.
Prática criminosa e arquitetada
De acordo com a delegada Flávia Monteiro de Barros, que, na ocasião da apuração desta matéria, estava à frente da 127ª Delegacia de Polícia Civil (127ª DP) de Búzios, geralmente, crimes desse tipo não se tratam de “ações isoladas”. “Há casos em que se identificam estruturas organizadas voltadas à venda ilegal de água, o que caracteriza uma atuação criminosa estruturada, com finalidade lucrativa”, explicou.
A delegada explicou ainda que a Polícia Civil costuma atuar em conjunto com órgãos como o INEA e concessionárias, como a Prolagos, para coibir esse tipo de ação. “Essa cooperação ocorre por meio de ações de fiscalização e troca de informações”, pontuou, complementando: “o abastecimento clandestino de água é uma prática grave, especialmente em regiões como a Região dos Lagos, onde há histórico de pressão hídrica (…)”.

Além das fiscalizações contínuas, uma das ferramentas realizadas para conter esse tipo de ação, segundo o INEA, é a utilização de drones e georreferenciamento para identificar poços clandestinos em áreas rurais e urbanas da Região dos Lagos.
Mas não é só Búzios que registra esse tipo de ação criminosa. Inclusive, de acordo com a Prolagos, as regiões com o maior registro de ocorrências desse tipo ficam localizadas em Cabo Frio, sendo nos bairros Jardim Esperança, Tangará e Monte Alegre, além do distrito de Tamoios.
A concessionária explicou que, geralmente, a captação irregular acontece com mais frequência em áreas com ocupação irregular ou urbanização recente, onde os pipeiros ilegais furtam a água da rede de distribuição para racionar para grandes consumidores. “A perda de pressão afeta a normalidade do abastecimento, além de representar um risco para a saúde, por causa das condições inadequadas de higiene no armazenamento dessa água”, destacou.



Riscos à saúde
E, quando o assunto é saúde, a preocupação aumenta. Isso porque, a ingestão da água captada irregularmente pode gerar uma série de doenças. Segundo a dra. Apparecida Castorina Monteiro dos Santos, médica infectologista de Cabo Frio, esse consumo pode provocar “doenças causadas por protozoários como amebíase, giardíase e toxoplasmose, (…) além de Ascaridiáse, ancilostomíase e teníase; (…) Salmonela, Escherichia coli enterohemorrágica e cólera. Doenças virais como rotavírus e hepatite A”.

Não para por aí. A infectologista também explicou que o contato indireto com essa água, como banho, lavagem de alimentos ou limpeza de utensílios, também podem gerar prejuízos.
“O risco existe pois, ao lavar os utensílios podemos manter os patógenos no mesmo produzindo doença, apesar do risco menor que a ingestão”, explicou, complementando que “os sintomas variam de acordo com o patógeno, mas em grande maioria cursam com dor abdominal, vômito e diarreia. No caso de hepatite A, podem aparecer sintomas como icterícia, febre, urina escura e fezes brancas, sendo que a maioria é assintomática e nos adultos os sintomas geralmente são mais graves. (…) A água contaminada pode causar danos ao sistema nervoso, problemas renais, câncer e afetar a saúde de ecossistemas aquáticos”.
A situação se torna ainda mais preocupante quando populações vulneráveis, como idosos, crianças e pessoas imunocomprometidas, consomem água proveniente de captação irregular. De acordo com Apparecida, “a vulnerabilidade aumenta o risco de sintomas graves e morte”, pontuando que essa ingestão pode impactar a saúde pública.
A infectologista explicou que, segundo boletim epidemiológico do MS (2024), entre 2000 e 2023, foram registrados um total de 16.839 surtos de doenças notificados envolvendo alimentos e água contaminados, sendo 6,8% desse valor associado exclusivamente associado à ingestão de água infectada. “Existe um grande impacto nos custos relacionados ao atendimento e ao afastamento do trabalho. Nos locais onde existe falta de saneamento, quando existe atendimento médico, a maioria dos atendimentos está relacionada às doenças veiculadas por água contaminada”, comentou.
O biólogo Eduardo Pimenta, que atua há mais de 40 anos na Região dos Lagos, defende que o maior impacto provocado pela captação clandestina de água é justmaente à saúde humana – mais até do que ao meio ambiente.

“[Essa prática] já foi muito mais significativa no passado – nas décadas de 70 e 80 – e, a partir dos meados da década de 90, começou a ser combatida porque houve a privatização do sistema de oferta de água bruta para tratamento e consumo humano, através das concessionárias que chegaram à Região [dos Lagos]. A partir daí, ela passou a ter um potencial de impacto ambiental muito menor”, explicou, complementando: “(…) A maior preocupação, do meu ponto de vista, é essa água ser usada para consumo humano. Ou seja, chegar às cisternas ou caixas d’água das casas, em bairros com grande adensamento urbano, onde ainda existem sistemas antigos de fossa, filtro e sumidouro. Nesse caso, o lençol freático pode estar contaminado por agentes patogênicos, e aí o impacto na saúde realmente é muito significativo”.
O biólogo destacou ainda que esse consumo pode provocar um impacto ambiental dentro do âmbito da saúde pública, provocando “sobrecarga do Sistema Único de Saúde (SUS), com o surgimento de endemias, problemas gastrointestinais e doenças patogênicas, todas relacionadas a uma água sem controle de qualidade e sem tratamento adequado para o consumo humano”.
“Mesmo que não seja usada para cozinhar, só o ato de escovar os dentes já representa um contato com essa água potencialmente contaminada. Isso é especialmente preocupante para idosos e crianças”, destacou.
Impacto ambiental
Embora o biólogo acredite que, atualmente, os impactos ambientais sejam menores, o INEA destaca que a extração clandestina pode provocar uma série de danos ao meio ambiente, como o rebaixamento do lençol freático.
“A extração clandestina de água subterrânea por meio de poços ilegais pode provocar uma uma série de impactos ambientais, como o rebaixamento do lençol freático, que reduz drasticamente a disponibilidade de água no subsolo. Esse processo também favorece a entrada de água salina nos aquíferos, especialmente devido à proximidade com o mar e à Lagoa de Araruama, comprometendo a qualidade da água potável. A diminuição da umidade do solo afeta ainda a vegetação nativa de restinga e mata atlântica, agravando a erosão e a perda de biodiversidade”, explica o Instituto.
O órgão ambiental pontuou também que esses poços clandestinos, geralmente mal construídos e desprotegidos, também aumentam o risco de contaminação por fossas sépticas e outros poluentes”.
Ações educativas
A educação e a conscientização da população sobre a origem e uso adequado da água tratada têm papel estratégico na prevenção de problemas de saúde pública e instrução sobre a ilegalidade da prática. Segundo Apparecida Castorina, a infectologista entrevistada, o acesso à informação contribui diretamente para que a população exija condições adequadas de saneamento básico, incluindo tratamento de água e esgoto. “A conscientização da população é de suma importância”, pontua.
Nesse contexto, ações educativas voltadas ao uso responsável da água são adotadas por diferentes instituições. O Inea, por exemplo, atua não apenas promovendo campanhas de conscientização e incentivo à regularização das captações — principalmente entre pequenos produtores e domicílios —, como também investe na capacitação de agentes de fiscalização e na integração de dados com outros órgãos, com o objetivo de ampliar a eficiência do controle ambiental.

A concessionária Prolagos também mantém iniciativas voltadas à educação ambiental. Por meio de projetos socioambientais, realizados em unidades próprias, escolas e comunidades, a empresa foca na prevenção e no diálogo com os moradores. Entre as ações, destacam-se os programas “Afluentes”, que promove encontros com lideranças comunitárias para escuta e esclarecimentos, e “Prolagos no Seu Bairro”, que leva os serviços comerciais da empresa até as comunidades.
Além das ações educativas, a concessionária também realiza fiscalizações voltadas ao combate das ligações clandestinas, que podem interferir no planejamento e na operação do sistema de esgotamento sanitário. Isso ocorre porque a estrutura é dimensionada com base no volume de água distribuído legalmente. Para lidar com essas interferências, a empresa afirma contar com equipamentos de monitoramento em tempo real e equipes técnicas responsáveis por identificar e corrigir possíveis irregularidades.
A concessionária ainda ressalta que a fiscalização e correção de irregularidades dependem da colaboração da população. Denúncias de ligações clandestinas podem ser feitas de forma anônima pelos canais de atendimento: telefone e WhatsApp (0800 7020 195) ou pelo site www.prolagos.com.br.
Ludmila Lopes
Graduada em Jornalismo pela Universidade Veiga de Almeida. Já atuou como apresentadora na Jovem TV Notícias, em 2021. Escreve pelo Portal RC24h há 4 anos e atua, desde 2022, como repórter no Jornal Razão, de Santa Catarina. É autora publicada, com duas obras de romance e quase 1 milhão de acessos nas plataformas digitais.
Vencedora do 6º Prêmio Prolagos de Jornalismo Ambiental, na categoria web.