Ingrid Maria, filha de pescador, cria própria marca e leva representatividade, renda e memória afetiva para comunidade pesqueira de Búzios. “Meu desejo era poder estar perto das minhas filhas”, relembra, sobre o momento em que decidiu investir no seu sonho de infância. Quando conheceu a costura, ainda era criança e não imaginava que as aulas de tapeçaria, que fez aos 7 anos, seriam o início do seu projeto no futuro. Hoje, à frente da Constelação Kids, encontrou na agulha e na linha o caminho para costurar ancestralidade, identidade e futuro.
Segundo a empreendedora, a virada em sua trajetória veio com o curso Bonecas Negras, iniciativa da Associação Bonecas Negras, que há mais de uma década utiliza a costura como ferramenta para exaltar a cultura afro-buziana. “As próximas gerações saberão que é possível trabalhar com artesanato e costumes tradicionais”, reforça Luciana Passos Rafael, presidente da Associação.
Ingrid concorda. Desde que conheceu a Bonecas Negras, defende que é preciso incentivar as novas gerações sobre as possibilidades relacionadas à pesca. Criada apenas pelo pai, o pescador Ivan, Ingrid cresceu vendo o mar ditar o ritmo da vida no quilombo da Praia Rasa, comunidade pesqueira que remonta ao fim da escravidão e carrega séculos de saberes tradicionais. “Vejo ele fazendo as iscas na mão. Quando vou à casa dele, costumo ver ele pescar e levo minhas filhas para aprender também”, conta, emocionada.
Uma oportunidade para compartilhar essa sabedoria será o Festival da Pesca – Feira de Projetos do Mar, que acontece neste sábado (18) e domingo (19). Ingrid levará suas peças e acredita que o evento é o espaço para famílias conversarem sobre as riquezas da biodiversidade marinha, e trocar experiências. “A mensagem que eu quero deixar para as famílias que vão nesse festival é para não desistirem de mostrar o que já foi vivido para as crianças na atualidade, independente de tecnologia, porque é uma cultura muito rica”, defende.
O Festival acontece na Praça Santos Dumont, no centro de Búzios (próximo à Rua das Pedras) e será aberto ao público com programação para todas as idades — das 12h às 20h, no sábado, e das 11h às 19h, no domingo. Dentre os 24 projetos que irão celebrar os saberes da pesca artesanal, a beleza da cultura caiçara e a riqueza da gastronomia local, a constelação de Ingrid irá materializar a força da união das mulheres de Búzios. “A nossa união nos sustenta. Nós fazemos acontecer através da força de trabalho”, afirma Luciana Passos, reforçando o papel das mulheres em diversificar a renda e preservar os saberes locais.
Para oferecer o curso, que já formou 280 mulheres da região, a Associação participou do Projeto de Educação Ambiental, viabilizado por meio dos recursos do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) Frade e geridos pelo Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (FUNBIO).
Um novo olhar sobre Búzios
Foi nesse espaço de trocas e aprendizado que, em 2024, Ingrid aprimorou suas habilidades e amadureceu o desejo de empreender. “Por se tratar de um projeto de resgate cultural, eu comecei a me enxergar, a me empoderar, a ver o mundo de outra forma”, conta.
Assim, naquele ano, com o nascimento da segunda filha, Estrela Maria, e sua primeira filha Valentina Maria, então com 7 anos, a Constelação estava completa. A empreendedora deixou o emprego no hotel em Búzios para apostar, exclusivamente, no seu sonho. “Quando eu saia de lá [do hotel] eu corria para poder costurar”, relembra Ingrid do período que precisava dobrar a jornada para participar do curso de costura oferecido pela Associação Bonecas Negras.
Nesse universo de memórias, as lembranças da avó Marlene, que fazia bonecas de espiga de milho e pano, completam a herança afetiva de Ingrid. Os vestidos, laços e conjuntos da marca unem conforto e afeto para vestir meninas de 2 a 8 anos e cada peça é pensada para ser acessível às famílias da região. “Na minha infância eu não tive oportunidade de olhar um vestido em uma loja e comprar. Então, faço vestidos arrumados e encorpados, mas com custo baixo, para que todo mundo possa ter acesso”, explica.
O pioneirismo, representado pela primeira marca de roupas quilombola da região, exalta a força das relações com a terra e o território e das práticas culturais próprias. Para ela, aproximar as filhas desses saberes oferece caminhos de ressignificar a ocupação de Búzios. “Você não vê nas pousadas, nos hotéis, produtos de quilombolas, caiçaras ou de marisqueiras. A gente tem um lugar cheio de histórias que valeriam a pena ser contadas, para não caírem no esquecimento e quando o turista de fora chegar, ele encontrar um produto das pessoas que moram aqui.” desabafa.
No caso de Búzios, a Associação desempenha papel essencial na valorização da cultura local, em uma cidade que, após a visita de Brigitte Bardot em 1964, viu o turismo mudar o ritmo da vida tradicional. “A gente ainda não sabe se isso foi bom ou se foi ruim”, brinca Luciana, com humor e lucidez.
Segundo o estudo “Linking ecosystem services and human health in coastal urban planning” ( 2021), publicado no Ocean & Coastal Management, a região passou por uma expansão urbana descontrolada, saltando de 4108 habitantes em 1970 para 33870, um crescimento de 700%. E, se por um lado, o turismo é o motor dessa engrenagem, movimentando a economia de Búzios, dentre os municípios com maior crescimento no país, segundo o IBGE, ele também empurrou as comunidades tradicionais para longe do mar. Ingrid quer mudar essa lógica: ‘“Eu gostaria que Búzios olhasse de verdade para essas mulheres. Espero alcançar muitas com a minha loja, principalmente esse público que não é visto e não é lembrado.”, conta a empreendedora sobre suas expectativas para o futuro.