COLUNISTA RC24H/ MARCELO PAES - Galpão do Sal é a memória da cidade de Cabo Frio

'Ficar buscando datação histórica do que é memória é um grande erro, que gente que se dedica ao patrimônio só o faz se estiver servindo aos interesses do dinheiro e da especulação imobiliária, ou seja, se tiver se vendido para o vil metal'


É preciso ficar claro que memória se conta a partir do que existe, e não a partir do que pode ter existido. Um exemplo: salvo engano, Herberto Sales, grande memorialista brasileiro, acadêmico que veio morar em São Pedro da Aldeia no fim da sua vida, buscando escrever as suas memórias, estava escrevendo sobre a sua infância e narrava a amizade que tinha com os filhos de um vizinho, esquecido do nome de uma das meninas, ligou para sua irmã e perguntou: “como era mesmo o nome daquela sua amiga, vizinha a nós naquela casa azul?”. A irmã disse o nome, mas disse que a casa era amarela. Ele retrucou afirmando que era azul. E ela insistiu que tinha absoluta certeza que era amarela. Herberto então lhe disse, “sim, na sua memória é amarela, mas na minha memória é azul”. 

Enfim, nem sempre temos a exatidão da estrutura físico material tal e qual ela efetivamente era, isso porque o tempo, que embaça a nossa memória, também modifica estruturas dos imóveis. Mas o importante é contarmos, a partir do que temos hoje, tudo o que ali existiu.

Ficar buscando datação histórica do que é memória é um grande erro, que gente que se dedica ao patrimônio só o faz se estiver servindo aos interesses do dinheiro e da especulação imobiliária, ou seja, se tiver se vendido para o vil metal.

O fato do que chamam galpão de sal, mas que pode ter sido parte de um estaleiro, não muda em nada a memória daquele local. Ali foi o primeiro porto de Cabo Frio, responsável pelo primeiro núcleo urbano da cidade, o bairro da Passagem. Além do mais, por ser galpão de sal, ou por ser um estaleiro, como a casa amarela ou azul de Herberto Sales, reflete a memória dos pretos pobres da cidade, onde escravos de outrora e ex-escravos recém alforriados, empregaram muito das suas forças físicas, deixando ali muito da sua saúde e das suas vidas. Não por menos, o nome da igreja que ali existe é Igreja de São Bendito, o santo que foi um homem negro de origem humilde e pobre, bem como o nome do largo onde ela se situa é Largo de São Benedito.

Um dos mais renomados patrimonialistas do mundo, responsável pelo plano master de Olinda e o seu título de Patrimônio da Humanidade, consultor da UNESCO, o professor Fábio Zancheti diz que: “a teoria da conservação sofreu grande reformulação nos últimos 20 anos. O seu foco mudou da busca das características físico materiais, para a busca de significâncias e valores. Os valores simbólicos são aqueles que atribuem ou reforçam os significados dos objetos materiais. São valores que dependem da cultura, passada e presente, e das relações sociais de uma comunidade.”

Atropelar aquele local com um empreendimento imobiliário de três casas de luxo, é apagar para sempre a memória da cidade de Cabo Frio. E isso é um crime com as vidas passadas e com as vidas futuras, que jamais terão oportunidade de olhar para a sua ancestralidade.
 

*Marcelo Paes é médico, diretor do Hemolagos, em Cabo Frio. Dirigiu os projetos do Museu da República, no Palácio do Catete (RJ), entre 2002 e 2005

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