Acusado de pedofilia: Cultura de Cabo Frio cancela eventos do Maestro Budega; vítima relata abusos

Kéren-Hapuk, musicista cabo-friense, enviou carta ao Portal narrando o terror psicológico e físico que sofreu com o músico


Ângelo Correa dos Santos, o Maestro Budega, teve um evento cancelado pela Secretaria de Cultura de Cabo Frio. O comunicado foi feito por meio de nota enviada à imprensa na manhã desta quinta-feira (31). O cancelamento aconteceu após o impacto das denúncias de casos de pedofilia envolvendo o músico.

Budega foi acusado, pela primeira vez, de abusar sexualmente de uma menina de 10 anos em 2010. Na época, o fato teve grande repercussão na cidade. Mas, tempos depois, o maestro continuou a fazer parte do circuito cultural cabo-friense.

No últimos dias de janeiro deste ano, três eventos em Cabo Frio tinham a participação de Budega confirmada. Entre eles, um sarau que seria realizado no Centro de Cultura José de Dome, o Charitas, com apoio da Secretaria de Cultura. E foi exatamente esse evento que a Cultura suspendeu, sem prazo de ser realizado em uma nova data.

Meri Damasceno, secretária da pasta, explicou que o evento, a princípio, foi cancelado devido a tempestade que atingiu Cabo Frio na noite de sexta-feira (25). "O espaço (Charitas) está precisando de reformas estruturais importantes e com a chuva do dia 25, tivemos problemas", declarou Meri. 

Porém, no decorrer da nota, a secretária demonstrou ciência das acusações contra o Maestro Budega, afirmando que o evento segue cancelado até que o caso seja concluído. "Não fui cega ao que acontecia na internet por causa da última denúncia feita ao músico. Em respeito à responsável pela nova acusação e à justiça que esperamos apurar o caso, decidimos que o evento seguirá cancelado até que tudo seja esclarecido", pontuou.

 

ENTENDA O CASO

Maestro Budega é idealizador do 'Projeto Apanhei-te Cavaquinho', de educação musical informal. Em 2010, a vítima de abuso, uma menina de 10 anos, era participante do projeto. 

Segundo a denúncia, Budega foi buscar a menina em casa, com a justificativa de dar uma aula particular e ensiná-la uma nova música. Depois de muita insistência, o maestro conseguiu levar a garota. Ele desapareceu com a criança por cerca de três horas.

A avó da menina contou que, quando o maestro voltou, a criança desceu do carro transtornada, com as mãos cruzadas sobre o peito e trêmula. A tia da garota percebeu o estado de choque e a menina acabou relatando o abuso, ao ser questionada. Na época, o músico negou a acusação e se recusou a falar sobre o assunto. Agora o fato se repete.

Em uma publicação nas redes sociais, a designer Manuella Paiva questionou a participação do músico nos eventos culturais de Cabo Frio e, nos comentários da publicação, mais vítimas do maestro decidiram expor novos casos de abuso e pedofilia.

"Em minha pré adolescência fui perseguido por algumas vezes por esse senhor. Eu a pé e ele sempre de carro. Mas eu sempre fugia", comentou um rapaz.

Em um outro depoimento, uma jovem de 24 anos, contou que uma amiga também sofreu abusos do músico e acabou se envolvendo com drogas. "Não sofri abuso da parte dele, porque quando percebi o tipo de pessoa que ele era, me afastei. Estava na 4ª série quando tive contato com esse cara. Ele dava aula de violão e cavaquinho em uma escola. Quando estava na frente de adultos, se comportava de um jeito, mas quando não tinha a presença de um adulto, usava palavras de duplo sentido e até mesmo palavrões. Mas como eu era uma criança que dava trabalho na escola, eles não me deram ouvidos. E daí o pior aconteceu: uma amiga minha foi abusada e aliciada por ele. Tem problemas com drogas até hoje".
 
Uma da vítimas do Maestro Budega foi a cantora, compositora e musicista Kéren-Hapuk Andrav (foto), hoje com 22 anos. Na época em que foi abusada pelo maestro, Kéren tinha apenas nove anos e era aluna do Projeto Apanhei-te Cavaquinho. 

"Eu resolvi comentar no post de denúncia na rede, porque ainda haviam pessoas que não acreditavam que ele tinha feito isso, porque é assunto sério e não se pode acusar alguém tão gravemente assim. Então, eu tinha que fazer algo para a não perpetuação da cultura do estupro, da pedofilia. Eu não tive voz por anos. Uma criança não consegue falar abertamente sobre as questões. Elas precisam ser protegidas, amparadas, orientadas. (...) Somente 12 anos depois estou falando sobre isso e poderia ter evitado que aquela outra criança e tantas outras sofressem o mesmo. Então eu sufoquei o medo que me sufocava e falei", desabafa a cantora.

Em uma carta ao Portal RC24h, a musicista contou com detalhes todo o sofrimento e terror psicológico e físico que passou com Budega. (Confira a carta na íntegra no final da matéria)

“Eu ficava travada, não conseguia reagir e acabava agindo naturalmente também, apesar de estar morrendo de medo”, relata Kéren, afirmando que Budega não era agressivo e sempre agia com naturalidade quando tentava tocá-la, o que lhe causava confusão.

Em meio a várias tentativas de abuso da parte do maestro, a última tentativa marcou Kéren de vez. Foi quando ela resolveu contar para a avó o que havia acontecido e saiu de vez do projeto. "O pior dia foi quando ele me levou para um lugar estranho e falou que ia me deixar dirigir. Ele me forçou a sentar no colo dele. Mais uma vez, eu pedi para ele me levar para casa, morrendo de medo. Quando eu percebi, ele estava com o pênis para fora. Eu entrei em desespero, mas sempre tive que ficar contida e não demonstrar medo até ele me deixar em casa, porque eu tinha muito medo do que ele pudesse fazer. Ele continuava a ser ‘bonzinho’ e a agir como se nada estivesse acontecendo", expõe a compositora.

Cerca de dez anos depois dos abusos, Kéren acabou reencontrando com o Maestro Budega. Ela chegou a cantar com o músico em alguns eventos da cidade. "Não sei o que havia na minha cabeça para aceitá-lo de novo na minha vida. E agora eu respeitava ele e o tinha como mestre e mentor".

Kéren lembra que foi um questionamento da namorada que fez com que ela se abrisse e começasse a relatar os abusos que sofreu do músico. “Eu disse que ele havia feito o mesmo comigo. Ela ficou chocada e me perguntava o porquê de eu ainda falar com ele e cantar com ele. Eu não sabia responder, não entendia. (...) Ele se faz de bonzinho, de guru espiritual. Ele acessa o universo infantil e faz as crianças confiarem nele. Ele fez isso comigo”, lamenta Kéren, que ainda conta que precisou passar por um processo de entendimento psicológico "porque foi uma história muito longa e profunda dentro de mim, que só agora eu estou podendo me livrar dela, e parar de sentir culpa, porque não há motivos para culpa. A culpa é somente do abusador. Não se pode jogar pra debaixo do tapete, passar pano, ele não pode voltar a ter projetos sociais com crianças carentes para ele abusar".

 

O QUE DIZ A DEFESA DE BUDEGA

A reportagem do Portal RC24h entrou em contato com Ângelo Correa dos Santos, o Maestro Budega. O músico solicitou que o contato fosse feito por meio da consultoria jurídica Wyppeth, responsável pelo cuidado do caso. Em nota, a consultoria afirmou que não poderia tratar do caso por telefone, mas afirmou que "o Sr. Budega está à disposição para prestar todas as informações que se encontram disponíveis pertinentes ao fato, para análise e convicção própria de cada um. Ele tem dito que não são verdadeiras as alegações divulgadas. Contudo, como envolve questões relacionadas à intimidade e privacidade de pessoas, e, por se tratar de questão relacionada à criança ou adolescente, existe, por obrigação legal, sigilo judicial, com restrição na divulgação dos fatos, objetivando não expor criança e/ou adolescente, estando os fatos corretos ou não. De todo modo, como forma de resguardar responsabilidades e medidas reparatórias, se torna importante a manifestação dos fatos pessoalmente, evitando entendimentos distorcidos ou intencionalmente direcionados para uma finalidade específica que não o melhor direito".

Segundo a consultoria, para o maestro, a questão "refere-se ao questionamento do porque o Sr. Budega se encontra participando em eventos significativos na cidade. (...) Aparentando que, na verdade, o que se deseja é se promover tentando destruir a imagem e reputação às custas da honra alheia".

 

PEDOFILIA É CRIME. DENUNCIE

Casos de pedofilia precisam ser denunciados. O canal mais indicado para denunciar é o Disque 100, do Governo Federal. A denúncia pode ser feita anonimamente. O serviço funciona diariamente das 8h às 22 horas, inclusive nos finais de semana e feriados.

 

 

CARTA ABERTA - KÉREN-HAPUK ANDRAV

"Quando eu tinha nove anos, o Budega foi à escola em que eu estudava (escola pública) fazer um convite aos alunos para participar do 'Projeto Apanhei-te Cavaquinho', um projeto social de música encabeçado por ele, e que ele dava aulas de cavaquinho. As aulas eram numa outra escola. Eu fiquei encantada, porque música é uma paixão, tanto que hoje sigo no caminho da música.

Comecei a frequentar as aulas de cavaquinho e, a partir daí, tinha um núcleo avançado para o qual fui convidada. As aulas eram na casa dele. Além de aulas, esse núcleo tinha repertório formado para apresentações públicas. Nesse núcleo, eu comecei a cantar também. Então havia uma rotina de ensaios, com dois dias na semana. Na maioria das aulas eu era a única menina. Eu sofria coação dos outros meninos. Cheguei a sofrer agressão física algumas vezes e me perguntavam o que eu estava fazendo lá, porquê eu era menina. 

Bom, no final das aulas, o Budega deixava os alunos em casa de carro, e ele me deixava por último. Eu gostava de aprender, tocar. Ele me tratava com carinho. Mas começaram a acontecer algumas coisas estranhas. Ele tentou me beijar na boca. No caso, pedia um beijo no rosto e virava o rosto pra me beijar à força na boca. Ele nunca conseguiu, porque eu me afastava. Depois ele passou a mão na minha perna e foi subindo a mão, até chegar à minha parte íntima. Eu tirava a mão dele e pedia pra ele me levar pra casa. Era tudo tão estranho. Eu não conseguia entender direito, porque ele não falava nada que fosse agressivo ou abusivo. Ele agia naturalmente como se nada estivesse acontecendo, mas ficava tentando tocar em mim e eu ficava travada, não conseguia reagir e acabava agindo naturalmente também, apesar de estar morrendo de medo.

Certo dia ele me levou pra casa dele e não tinha ninguém. Me levou pro quarto dele, dizendo que ele estava com dor de cabeça e precisava descansar antes de ensaiar. Apagou a luz e pediu pra eu fazer carinho na cabeça dele. Eu entrei em desespero e pedi pra ele me levar pra casa, que não queria ensaiar. Ele me levou. Ele sempre agia como se nada estivesses acontecendo, super natural, e eu ficava extremamente perdida e confusa.

O pior dia foi quando ele me levou pra um lugar estranho e falou que ia me deixar dirigir. Ele me forçou a sentar no colo dele e mais uma vez eu pedi pra ele me levar pra casa, morrendo de medo. Quando eu percebi, ele estava com o pênis pra fora. Eu entrei em desespero, mas sempre tive que ficar contida e não demonstrar medo, até ele me deixar em casa, porque eu tinha medo do que ele pudesse fazer.

Ele continuava a ser 'bonzinho' e agir como se nada estivesse acontecendo. Muito estranho. Eu fiquei o dia seguinte inteiro chorando, com medo, com trauma. Não aguentei. No caminho da igreja, eu contei pra minha avó o que tinha acontecido, com muita dificuldade e ao prantos. Eu não conseguia falar. Só consegui dizer que ele havia colocado o pênis dele pra fora. Foi tudo o que eu vi, o que consegui processar e dizer. Minha avó não sabia que eu ficava só com ele. Ela não sabia o que fazer. Ela me proibiu de fazer aulas com ele. Eu fui criada pelos meus avós.

Então nunca mais toquei no assunto com ninguém... Três anos depois, em 2010, saiu a notícia de uma menina que fora abusada por ele. Que ele levou pra ensinar uma música nova e desapareceu com a menina e retornou três horas depois. Eu fiquei super assustada, mas não tinha como falar com ninguém sobre. Eu tinha 13 anos e aquilo era algo tão estranho e tenebroso que eu guardava pra bem escondido dentro de mim.

Anos depois, com 19 anos, tornei a encontrá-lo. Nos conectamos novamente e cantamos juntos em alguns eventos da cidade. Não sei o que havia na minha cabeça para aceitá-lo de novo na minha vida. E agora eu respeitava ele, o tinha como um mestre e mentor. Até que um dia minha namorada viu essa notícia (sobre o abuso da menina de 10 anos) e comentou comigo, perguntando se poderia ser verdade. Num lapso de consciência, eu disse que ele havia feito o mesmo comigo. Ela ficou chocada e me perguntava o porquê de eu ainda falar com ele e cantar com ele... Eu não sabia responder. Não entendia, não sabia responder.

Durante um ano fizemos um processo de entendimento, de colocar pra fora e mergulhar nos meus sentimentos, psicológico e trabalhar a minha força interior para que eu pudesse ter forças para, de fato, trabalhar isso, que era uma ferida, algo que tinha um casulo dentro de mim, mas na verdade era algo feio, cheio de pus.

Nesse processo, eu cortei a relação com ele. Excluí das redes sociais e me escondia na rua quando ele estava presente em algum lugar ou evento. Nunca houve um enfrentamento direto.

Ele se faz de bonzinho, de guru espiritual, ele acessa o universo infantil e faz as crianças confiarem nele, como se ele soubesse o segredo do universo. Ele fez isso comigo. Mas eu já desvendei todo o mistério que ele faz, posando de espiritualizado.

Eu resolvi comentar no post de denúncia na rede, porque ainda haviam pessoas que não acreditavam que ele tinha feito isso. Porque é assunto sério e não se pode acusar alguém tão gravemente assim. Então eu tinha que fazer algo para a não perpetuação da cultura do estupro, da pedofilia. Eu não tive voz por anos. Uma criança não consegue falar abertamente sobre as questões. Elas precisam ser protegidas, amparadas, orientadas. Somente 12 anos depois estou falando sobre isso e poderia ter evitado que aquela outra criança e tantas outras sofressem o mesmo. Então eu sufoquei o medo que me sufocava e falei.

Ainda está sendo um processo de entendimento, de assimilação, porque foi uma história muito longa e profunda dentro de mim, que só agora eu estou podendo me livrar dela e parar de sentir culpa, porque não há motivos para culpa. A culpa é somente somente do abusador. Não se pode jogar pra debaixo do tapete, passar pano. Ele não pode voltar a ter projetos sociais com crianças carentes para ele abusar".

 

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